Breve história do Santuário de Nossa Senhora das Preces

Autor: Luís Filipe Torgal

Santuário de Nossa Senhora das Preces; Aldeia das Des (Oliveira do Hospital); concelho de Oliveira do Hospital, Portugal; ref: PM_033374_P_Aldeia_das_Des; ; Igreja; Photographer: Paul M.R. Maeyaert; www.pmrmaeyaert.eu, © Paul M.R. Maeyaert; pmrmaeyaert@gmail.com; Cultural heritage; Cultural heritage|Baroque; Europe|Portugal|Aldeia des Des; Europe|Portugal|Oliveira do Hospital

Frei Agostinho de Santa Maria publicou, entre 1707 e 1723, uma obra mística, monumental e incontornável sobre o culto mariano em Portugal, intitulada: Santuário Mariano, e história das imagens milagrosas de Nossa Senhora. No tomo II desta obra (1712, pp. 517-519) relatou que no cume do monte Colcurinho, «terra tão alta que parece querer competir com as estrelas […]. E assim dizem que dela se vê a cidade de Lisboa», apareceu uma «milagrosa imagem», «muito pequena, porque não tem mais de palmo e meio de estatura», da «Rainha dos Anjos», que «uns invocam como Nossa Senhora do Colcurinho e outros como Nossa Senhora das Preces». Não esclareceu como esta Senhora se manifestou, segundo a tradição, a uns pastorinhos, nem o ano em que apareceu. Contudo, adiantou que a inacessibilidade da serra levou o pároco de Aldeia das Dez a transferir a imagem encontrada para a igreja da sua paróquia. Mas a «Senhora» queria ser venerada no cimo do monte e por isso a sua imagem teria reaparecido duas vezes no sítio onde foi encontrada. Padre e paroquianos decidiram, então, respeitar a vontade da «Senhora» e edificar um pequeno oratório no local onde, aliás, já existiam vestígios de uma muralha castreja e foram encontradas moedas romanas; mais tarde, foi aí construída a ermida de Nossa Senhora das Necessidades. As dificuldades extremas para se deslocarem aquele local tão ermo e agreste levou os fiéis, algures, em meados do século XVII, a acomodarem a imagem num sítio mais baixo, acessível e amplo, localizado nas faldas da serra: o povoado de Vale de Maceira. A imagem ganhou fama de obrar milagres, atraiu romeiros e peregrinos, originando o nascimento do santuário de Nossa Senhora das Preces.

Junto à ermida atrás citada existe um cruzeiro, erigido em 1925, que substituiu um monumento idêntico anterior, do qual resta uma pedra desgastada pelo tempo que contém o mais antigo documento escrito do santuário. Aí pode ler-se: «[NESTE LUG]AR APA[RE]CEU N. SRA. [D]AS PRESAS NO A[N]O D. 1371».

Quando os imperadores romanos se converteram ao cristianismo e o impuseram como a religião oficial e única do império romano (édito de Tessalónica, 380), muitos dos remotos santuários pagãos associados a cultos mágicos de fertilidade, situados em locais ermos e belos, foram oportunamente transformados em santuários cristãos. O caso da conversão do local sagrado do Colcurinho terá ocorrido antes ou depois de 1371. O pretexto para essa conversão ao cristianismo poderá ter sido a notícia do avistamento de uma «Senhora» que determinou a criação de uma imagem e a edificação de uma ermida. Com o fluir do tempo, a vetusta ermida teria ficado esquecida e arruinada e a imagem entretanto perdida seria depois descoberta nos seus escombros (Augusto Nunes Pereira e Mário Oliveira de Brito, Nossa Senhora das Preces, 1945, p. 16). Certo é que histórias de aparições análogas foram reproduzidas em tempos posteriores, sobretudo em épocas de fomes, pestes e guerras, as quais tendem a inculcar no espírito dos homens comportamentos místicos. Ora, 1371 foi uma conjuntura particularmente conturbada da historia Europeia e de Portugal: Guerra dos Cem Anos, vagas de peste negra, crises de escassez agrária; reinado de D. Fernando (1367-1383), marcado por surtos pestíferos, penúria agrícola, fomes e revoltas sociais, mas também pelo envolvimento do rei em guerras desastrosas com Castela, as quais originaram o risco da perda da independência nacional.  

O santuário de Nossa Senhora da Preces começou a erguer-se pelo menos no século XVII, foi ampliado nos séculos subsequentes e conquistou novas valências. Casa do Púlpito (século XVII), antiga capela (século XVII) depois acoplada à igreja de Nossa Senhora das Preces, várias vezes ampliada (séculos XVIII-XIX), repleta de ex-votos que representam alegados milagres e o agradecimento dos crentes que deles teriam beneficiado, 12 ermidas representativas da Paixão de Cristo (séculos XIX), capelinhas de Santa Maria Madalena e de Santa Eufémia (século XIX), monumental chafariz de pedra servido por aparatosas escadarias (século XIX), jardim botânico ou «Quintal da Senhora» (século XIX), vedação em granito e pórticos de entrada do santuário (segunda década do século XX), albergue (1915-16), coreto (1895), uma vasta área em redor da capela de Santa Eufémia, concedida pelo Estado, em 1941, à Irmandade de Nossa Senhora das Preces e que ampliou o logradouro do santuário, e o empedramento da estrada oriunda da Aldeia das Dez até Vale de Maceira (1947), que permitiu o acesso de veículos motorizados ligeiros e pesados. 

A Irmandade de Nossa Senhora das Preces, fundada em meados do século XVIII, orientada pelo capelão do santuário, assume várias responsabilidades definidas nos seus estatutos (os mais antigos conhecidos remontam a 1886): recolhe e administra as esmolas, preserva os bens móveis e imóveis do santuário, assim como organiza e promove o culto. Tal culto obrigava à celebração de três festas maiores: Pentecostes (50 dias após a ressurreição de Jesus), natividade de Maria (8 de setembro) e apresentação de Nossa Senhora (21 de novembro). Para instigar o culto, anunciar os seus milagres e publicitar a sua obra, criou, em 1950, o jornal oficial de propaganda Voz do Santuário, que também não deixou de apregoar o seu absoluto alinhamento com o Estado Novo de Salazar, «homem providencial que Deus pôs no leme da barca portuguesa» (Voz de Fátima, 3-06-1956)  

O cotejo deste periódico dá-nos uma noção interessante da evolução do santuário e do culto da Senhoras das Preces, desde os anos 50 do século XX. Por exemplo, é possível captar que, durante a década de 50, uma das principais preocupações da Irmandade e do capelão era a estrada de acesso ao povoado de Vale de Maceira proveniente da Ponte das Três Entradas, estreita, picada, mal sinalizada, demasiado sinuosa e perigosa, que por isso condicionava bastante e fluidez do transito e a afluência de romeiros e turistas. Outra inquietação era a circulação inadequada de veículos motorizados, ligeiros e pesados, dentro da propriedade do santuário e junto da igreja (apesar de uma variante externa ter sido aberta, em 1957, em redor da área do santuário), os quais causavam um ruído ensurdecedor e prejudicavam a celebração dos atos religiosos. A falta de energia elétrica que tardava em chegar a Vale de Maceira, a ausência de espaços para os romeiros estacionarem e manobrarem carros e autocarros nos dias da grande romaria, a indiferença religiosa e os comportamentos mundanos e transgressores do espírito piedoso da festa assumidos por feirantes e romeiros eram outros problemas que preocupavam o capelão e a Irmandade. De resto, o confronto entre uma religião popular, mais alegre e relaxada, e uma religião oficial, mais diligente e penitencial, remontava a Oitocentos, século do liberalismo e da secularização de hábitos e costumes, ainda que, em Novecentos, nos anos do Estado Novo, as imposições austeras emanadas da hierarquia da Igreja tenham, geralmente, prevalecido sobre os comportamentos populares mais profanos.      

 Apesar dos condicionalismos supracitados, entre os anos 50 e 70, a romaria tradicional continuou a realizar-se com algum vigor, primeiro no último fim de semana de maio e, mais tarde, no primeiro fim de semana de julho. O programa religioso abria, no sábado, com uma missa na Igreja de Nossa Senhora das Preces, incluía, depois, as confissões dos peregrinos, música religiosa, a oração do terço e a via-sacra com pregação junto às capelinhas. No domingo, realizavam-se missas rezadas e cantadas, uma missa campal, com sermão, preferencialmente, versando sobre a narrativa da Virgem venerada, uma imponente procissão diurna, que integrava irmandades, associações de várias freguesias e muitos peregrinos, e uma piedosa procissão noturna iluminada por milhares de velas e que representava o clímax das celebrações. A parte profana da festa abarcava festivais de filarmónicas e ranchos no coreto do recinto, feira, comes e bebes, carrosséis e fogo-de-artifício. 

O Voz do Santuário noticiava a presença nestas festas de milhares de pessoas oriundos de «todos os lados de Portugal»: dos distritos das Beiras — Coimbra, Viseu, Guarda, Castelo Branco, Aveiro e Leiria —, mas também dos distritos de Lisboa, e até de Évora e de Portalegre. Um cronista mais regionalista, embora clarividente, do periódico arriscou escrever: «Se nos dessem licença e perdoassem o atrevimento, dizíamos que Fátima é que é uma segunda Senhora das Preces, porque Fátima é de há poucos anos e a Senhora das Preces é de alguns séculos. Simplesmente, Fátima, depois que Roma falou, foi desde os primeiros tempos amparada pela igreja e servida por muitos sacerdotes. A Senhora das Preces, porém, foi desde há muito tempo espoliada por leigos, desprezada e abandonada aos seus próprios destinos. Se a Senhora das Preces fosse sempre governada como nos seus tempos áureos de 1700 e 1800, seria hoje o que é Fátima, o que é o Bom Jesus, o que é o Sameiro – seria, sem dúvida alguma, o melhor e o mais espiritual santuário de Portugal» (Voz de Fátima, 7-06-1959).

Pelo menos até 1974, a romaria da Senhora das Preces continuou a ser apresentada pelo Voz do Santuário como a «Fátima das Beiras» ou mesmo o «mais antigo santuário mariano das Beiras». A afluência de romeiros e peregrinos a esta grande romaria manteve-se muito elevada, como comprovam as fotografias publicadas no jornal, que revelam muitas dezenas de autocarros amontoados ao longo da estrada e dos estacionamentos acanhados que envolvem o santuário (Voz do Santuário, novembro-dezembro de 1974), ou a cifra de cerca de «16 mil pessoas» que teriam comparecido na romaria de julho de 1972.

Escassos meses depois da revolução de 25 de abril de 1974, as relações entre o capelão do santuário, a Irmandade e setores da população local incendiaram-se. O motivo foi uma área baldia de 2 hectares que teria sido cedida pela Estado à Irmandade, em 1941, mas que alguns populares não reconheciam, argumentando que esse terreno devia pertencer à junta de freguesia da Aldeia das Dez (Voz do Santuário, novembro-dezembro de 1974). Decerto que este episódio deverá ser enquadrado nos conflitos pós-revolucionários emergentes entre uma população subitamente emancipada, mais politizada e menos devota, e a igreja oficial e os seus militantes católicos mais conservadores, que apoiaram a justificaram, incondicionalmente, as políticas autoritárias e repressivas do Estado Novo. Porventura, este caso pode representar um indício de que as romarias ao santuário começavam a perder o fôlego de outros tempos. Por outro lado, é ainda plausível considerar que a magnitude crescente atribuída à Cova da Iria, à sua narrativa mística permanentemente recriada e ao culto nacional e internacional de Nossa Senhora de Fátima tenham contribuído para um paulatino esvaziamento dos santuários mais regionais de romaria e arraial como o de Nossa Senhora das Preces, na aldeia de Vale de Maceira.  

Porém, como escreveu Célia Lourenço num artigo recente publicado no Comarca de Arganil (30-07-2020), há, hoje, sinais de uma revitalização da ancestral e outrora popular romaria da Senhora das Preces e, sobretudo, o desejo de colocar este local provido de especial beleza cultural e ambiental no centro dos roteiros turísticos alusivos ao concelho de Oliveira do Hospital e à Região Centro de Portugal.  

Fonte: http://mniadscrever.blogspot.com/2020/08/breve-historia-do-santuario-de-nossa.html